Morre Ferreira Gullar

1.

ontem fizemos as pazes:
eu e seu retrato (descanso
……………………. de tela),
eu e sua camisa (papel
de parede), eu
e sua ausência (pijamas, relógios).

nenhum marulho em voz alta
rompeu a placidez de domingo
– na paulista, dizem,
a multidão
…………… aderia à festa da
…………………. democracia.

você, por acaso, não.

sem caos nos cabelos,
sem entusiasmo,
sua morte surgiu
como um fato qualquer nos jornais:

morre o poeta
………… ferreira gullar, morre josé
ribamar ferreira,
………….. morre goulart,

morre o autor do poema
……………….. enterrado,
morre o ditador
fidel castro
(“dentro da noite veloz”), morre
o debate sobre oswald
…………… de andrade,
morre,
morre oswald de andrade,

morre o colunista
da folha de são paulo,
morre o autor
do poema              sujo,
…….. morre a manhã,
……….. morre a tarde,

morre a primavera
de 2016, morre t. s. eliot,
morre a terra, devastada,

morre (um último suspiro),
morre (tiro de fuzil),
morre (o Sol, a flor do chico),

morremorre,

morre um cisco do século vinte,
morre um crítico de arte
como morre qualquer um
a qualquer hora.

2.

ontem fizemos as pazes:
sua múmia e eu-embalsamado.

sua obra, porém,
mantém-se arisca
…………. (circulação
……………do poema
sem poeta: forma autônoma
de toda circunstância)

e me enfrenta
e me derruba

com seus coices, seus incêndios, suas aftas
e também com seu silêncio –
uma pera apodrecendo na varanda.

no coração do diagrama,
diagrama de palavras,

– galo, fogo, gente, luta –,

ainda há sangue, zumbidos na noite,
alguém que diz não, golpes de estado,
muito vermelho, muito azul, muito verde

e no
fundo
turvo
do
torve-
linho
velhos signos que borbulham

– joia, mar, erva, lembro –.

Algo sobre Treme ainda

Há quase um ano, escrevi um e-mail para Fabio Weintraub apresentando minhas primeiras impressões após a leitura de Treme ainda (2015). O livro, do qual gostei muitíssimo, é no momento um dos grandes concorrentes do prêmio Jabuti na categoria poesia. Sabendo disso e como forma de comemoração do mais recente lançamento do poeta, a antologia Falso trajeto (2016), que marca os 20 anos de sua produção, resolvi compartilhar aquelas primeiras – e agora assentadas – anotações sobre o livro.

Pretendo um dia ampliar essas reflexões e desenvolver um diálogo de maior fôlego, que contemple mais aspectos da poesia de Weintraub (em comparação, talvez, com outros poetas…). Mas, por ora, segue o texto assim, a seco:

Fiz minha primeira leitura, um tanto apressada, de Treme ainda há alguns dias. Posso dizer, de cara, que gostei muito.
9788573266030
Os elementos que amarram o livro todo (os dejetos, as camas de hospitais, os moradores de rua, a velhice entrevada etc) são de difícil manipulação – entre o moralismo bom-moço e a sordidez opressora (cuja base comum é o lugar de classe, sempre “superior” ao do desvalido) –, mas você consegue resolvê-los muito bem com uma mistura inusitada de escuta atenciosa e identificação lírica com aqueles a quem observa.

Essa equação poderia desaguar numa poesia de boa intenção mas falsa em sua realização concreta. Não é o caso, obviamente. Isso ocorre, eu intuo, pelo modo como você articula os diversos significados do termo “público” – que perpassa o livro todo. O lugar que, em tese, seria de integração democrática, torna-se um lugar de vexame (é essa a palavra) para aqueles que são vistos (ou mesmo se veem) como cidadãos de segunda classe. E a identificação lírica resolve-se, aqui, pela justaposição dessa acepção de “público” com uma outra, também usual: a de “espectadores” (algo evidente num poema como “Prazer”). Com essa segunda acepção, o “vexame” do artista (sua impossibilidade de realizar o poema como “espaço de integração”?) pode ser associado, sem falseamento, com o o primeiro “vexame” – e aí está o pulo do gato.

Assim, com essa justaposição, acontece uma espécie de ampliação de certo gesto de Chico Alvim: gosto de pensar, por exemplo, que a primeira estrofe de um poema como “Orgulho” (ou do sintomaticamente intitulado “Público”) poderia facilmente aparecer num livro como Elefante. Mas seu poema não para na conversa entrecruzada e se amplia, de maneira consequente, revelando o “orgulho” daquela voz que, para admitir que “pedir não é vergonha”, precisa descrever o fardo daqueles que “não sabem pedir”. No fim, a “vergonha” da situação de quem precisa carregar o “filho pesado” é resultado do “orgulho”, logo (assim a voz quer) o “orgulho” de não passar por situação semelhante poderia elidir a “vergonha” de ter que pedir…

Em outro ponto, senti também um diálogo ao avesso com a poesia do Régis Bonvicino: enquanto a degradação do mundo, em Página órfã, mistura-se a um moralismo inquisidor (contra a própria poesia, inclusive, embora seu estatura permaneça intacta), em seu Treme ainda a identificação lírica com o outro (que não é demagógica justamente pelo que levantei acima) recompõe a humanidade possível daquelas figuras degradadas – o que, por um lado, “desobjetifica” aquelas pessoas e, ao mesmo tempo, torna a situação ainda mais vexatória (já que a dor do outro eleva-se a uma condição que destaca a opressão objetificadora das relações sociais contra aqueles que não participam da “ordem produtiva” – mendigos, idosos, travestis, etc).

Esse último aspecto fica evidente em poemas muito bonitos como “O céu que nos protege”  (no qual, apesar de estilhaçado e invertido, ainda há “céu”) ou, de maneira mais mediada, no ótimo “Hibisco”, meu favorito do livro, a partir do qual posso dizer, fazendo um trocadilho mais ou menos infame, que “a flor é a náusea”.


Reproduzo abaixo o poema “Hibisco”:

HIBISCO

na rua a flor amassada
parece um naco de carne
que os cachorros desprezam

confusão de vermelhos
raiados de branco
qual paz ou gordura
fechando o canal

um naco de carne
impróprio a vaso ou canteiro
despojo que as pombas não bicam
e a chuva não apodrece


Mais sobre Treme ainda:

MEME poemas

Assim que publiquei meu primeiro livro, Mesmo poemas, cogitei o lançamento quase secreto (como esse blog) de uma nova série, que se chamaria MEME poemas. O trocadilho infame caracterizava bem o espírito da coisa: poemas visuais esdrúxulos, calcados no humor duvidoso de quem reconhece um parentesco bastardo entre os memes que circulam nas redes sociais e a chamada “tradução intersemiótica“. Na época, mostrei apenas a um amigo, Mario Sagayama, alguns poemas – todos terríveis – que criei para o projeto. Hoje, sei que fiz muito bem em escondê-lo por tanto tempo…

Eis uns exemplares:

1. A QUEDA DE ÍCARO (TENSO)

tenso.jpg

É engraçado observar como, em apenas cinco anos, a piada tornou-se datada e, em alguma medida, incompreensível – já que o meme tenso, que era um clássico, desapareceu…

2. RE-FRAC-TAL

refractal

Cheguei também a escrever (em transe) outro péssimo poema para Gal Costa (e que, pior, enviei para ela!). Sua revelação no século XX, tão idêntica e tão nova em relação aquilo que fora sua força nos anos 1970,  deixou-me tão entusiasmado que acabei arriscando essas homenagens…

3. RGB

rgb

Típico poema de “revolta adolescente”, que identifica no sistema de reprodução de cores em dispositivos eletrônicos três frentes imbricadas (a “política”, o “artística” e “mercadológica”, como um conjunto midiático). A ideia se baseia na tradução intersemiótica do soneto das vogais de Rimbaud, feita por Augusto de Campos e Arnaldo Antunes.

4. PROJETO / PRO ETO

Captura de Tela 2016-11-04 às 18.47.17.png

Não sei porque considerei que esse recorte/venda em Lilya Brik (na célebre capa feita por Rodchenko para o livro Sobre isto, de Maiakosvki) seria uma imagem sugestiva…

5. PÓS-MODERNINHO

Posmoderninho.jpg

Uma tosca homenagem a Augusto de Campos (equilibrada pelo contraveneno da poesia marginal)

Contra a pressa, mais pressa

Embora seja muito ansioso, demoro muito tempo para escrever um livro. Esboço poemas, dúzias deles, e são esses primeiros esboços que determinam o trajeto que o livro percorrerá. Todavia, na maioria dos casos, esses pequenas peças desaparecem aos poucos e o livro vai tomando outra feição, que só muito remotamente se assemelha ao que eu inicialmente pretendia.

Mesmo poemas, que publiquei em 2010, começou a ser escrito em 2001 e seu título original era Alguma (outra) poesia. A pretensão adolescente do título era reforçada pelos quase 100 poemas que formavam a obra, dos quais nenhum sobreviveu (não tenho apego aos meus escritos antigos: jogo fora tudo o que não resistiu à prova do tempo). Em 2005, ansioso para publicá-lo, tinha o livro por encerrado e cheguei a disponibilizá-lo em pdf, com capa de minha própria autoria (uma referência pueril à capa da primeira revista Klaxon, filtrada pelo senso geométrico da poesia concreta).

Dos amigos, o único que talvez tenha visto esse “livro” foi Eduardo Lacerda, hoje editor da Patuá. Por intermédio dele, publiquei um poema, “Copyleft”, no jornal O Casulo, em 2006, o mesmo ano em que entrei na faculdade de Letras, na USP. Nesse momento, além de conhecer pessoas incríveis, com as quais mantenho alegre contato, ampliei bastante minha leitura de poesia (sobretudo de poesia contemporânea) e logo percebi que aquele Alguma (outra) poesia era um bom caderno de exercícios, mas ainda não era o livro que eu queria.

Assim, de 2005 a 2010, degluti o que havia de essencial em meus primeiros textos e foi tomando forma aquilo que seria o Mesmo poemas, projeto pelo qual também recebi uma bolsa ProAC (na época, para publicação, que seria feita pelo Selo Sebastião Grifo, de Paulo Ferraz).

Com o livro de estreia no prelo, aguardando seu lançamento, já trabalhava apressadamente em poemas que, para mim, dariam corpo ao próximo livro – esse Luto, aqui em aberto. Claro que o título era outro (foram vários outros!) e, mais uma vez, esses primeiros esboços foram limados da atual edição. Posso dizer, aliás, que de 2010 a 2012 não escrevi nada que realmente me agrade agora, mas sei que esses exercícios foram essenciais para chegar a este Luto.

Há ainda um detalhe que aproxima a confecção dos meus dois livros: definidas as molduras e a estrutura geral da obra, entro num surto de criação e escrevo uma série de poemas que se encaixariam perfeitamente dentro dessa estrutura. É como um quebra-cabeças que, após concluído, revela toda sua lógica – o que permite ao jogador reorganizá-lo, incluir novas peças, substituir elementos acessórios, concentrar ou expandir suas margens…

Nesse sentido, para mim, o livro nunca se encerra totalmente – poderia ser sempre alterado, ainda que em pequenos detalhes, sem ser contido numa forma “definitiva”. Por outro lado, por ser ansioso, tenho pressa em fixar sua imagem e é sempre um drama interno estabelecer esse ponto fixo, que será o livro.

Um livro assim é apenas um momento, limitado no tempo/espaço, da saturação de expectativas, potencialmente inesgotáveis, que o orbitam. Sua existência física (mesmo em formatos digitais) determina um recorte mínimo no enorme horizonte de pretensões daquilo que um conjunto de poemas pode ser. Essa faceta visível, aparentemente imóvel, não estanca, porém, toda fluidez da matéria subjacente que também a constitui.

Remington, Olivetti, etc.

1.
Apesar da enorme admiração que nutro por Mário de Andrade, meu contato com sua poesia ainda é bastante resistente. Quanto as soluções poéticas — levando-se em consideração a disparidade brasileira em relação à cultura europeia e a necessidade de representação desta disparidade visando uma superação — o Pau brasil (1925) de Oswald parece-me mais interessante do que a Paulicelia desvairada (1922) de Mário, com suas idiossincrasias tão reconhecíveis e, por isso mesmo, tão questionáveis.

O poema abaixo faz parte do livro-poema Losango caqui, publicado dois anos depois do famoso Pauliceia e ainda embebido fortemente nas plataformas modernistas forjadas em 1922. Os poemas são razoavelmente longos, com justaposição de vozes, os chamados versos “harmônicos” — explicados no “Prefácio interessantíssimo” — como “Amor ódio tristeza”, as blagues com clichês do velho mundo — e do novo também —, a inclusão do elemento “moderno” na temática, na linguagem e na metalinguagem, etc.

II – MÁQUINA-DE-ESCREVER

B D G Z, Reminton.
Pra todas as cartas da gente.
Eco mecânico
De sentimentos rápidos batidos.
Pressa, muita pressa.
…….Duma feita surrupiaram a máquina-de-escrever de meu mano.
…….Isso também entra na poesia
…….Porque ele não tinha dinheiro pra comprar outra.

Igualdade maquinal,
Amor ódio tristeza…
E os sorrisos da ironia
Pra todas as cartas da gente…
Os malévolos e os presidentes da República
Escrevendo com a mesma letra…
……………..Igualdade
…………..Liberdade
………..Fraternité, point.
Unificação de todas as mãos…

Todos os amores
Começando por uns AA que se parecem…
O marido engana a mulher,
A mulher engana o marido,
Os amantes os filhos os namorados…

……...“Pêsames”

………“Situação difícil.
……….Querido amigo… (E os 50 mil-réis.)
…….…….…..…….Subscrevo-me
…….…….…….…….…….…….…….…….admʳº.
…….…….…….…….…….…….…….……..obgº.”

E a assinatura manuscrita.

Trique… Estrago!
É na letra O.
Privação de espantos
Pras almas especulares diante da vida!
Todas as ânsias perturbadas!
Não poder contar meu êxtase
Diante dos teus cabelos fogaréu!

A interjeição saiu com o ponto fora de lugar!
Minha comoção
Se esqueceu de bater o retrocesso.
Ficou um fio
Tal e qual uma lágrima que cai
E o ponto final depois da lágrima.

Porém não tive lágrimas, fiz “Oh!”
Diante dos teus cabellos fogaréu.
A máquina mentiu!
Sabes qu
e sou muito alegre
E gosto de beijar teus olhos matinais.

Até quarta, heim,ll.

Bato dois LL minúsculos.
E a assinatura manuscrita.

(Mário de Andrade. In: Losango cáqui ou afetos militares de mistura com os porquês de eu saber alemão, 1924)

O movimento do poema é dinâmico, associando primeiramente o advento da máquina de escrever a uma espécie de perda de aura, não somente do poema — também do poema! — mas do próprio “ritual” da correspondência. “Eco mecânico/ De sentimentos rápidos batidos”. A ambivalência de “batidos”, embora eu não saiba se fora premeditado pelo autor — “batido” no sentido de “desusado” parece apropriação recente —, torna-se sugestivo aos ouvidos contemporâneos. No entanto, esta perda de aura — em sentido, digamos, benjaminiano — aponta para uma difusão mais democrática, pois que mais rápida e abrangente, das possibilidades de recepção e/ou produção dos objetos produzidos através da máquina:

(…)

Pra todas as cartas da gente…
Os malévolos e os presidentes da República
Escrevendo com a mesma letra…
……………..Igualdade
…………..Liberdade
………..Fraternité, point.
Unificação de todas as mãos…

(…)

Esta “unificação de todas as mãos”, no entanto, resulta em banalidades que, ainda assim, precisam da “assinatura manuscrita” para serem válidas. “A máquina mentiu”, afirma o poeta — depois de uma descrição meticulosa de um erro técnico que simula uma lágrima grafada na página —, exigindo a subordinação da máquina ao homem — a ênfase na “assinatura manuscrita”.

2.
A máquina de escrever ronda o imaginário de muitos poetas modernos por suas possibilidades técnicas que permitem pensar e produzir poesia de novas formas. Um livro como poetamenos (1953) de Augusto de Campos, embora prime pelo refinamento estilístico da fonte Futura, passou primeiramente pelo complicado processo da máquina de escrever com fitas coloridas — um fac-símile de “lygia fingers” datilografado pode ser visto na exposição REVER, em homenagem ao poeta, instalada no SESC Pompeia.

(Augusto de Campos. In: poetamentos, 1953)

Em outra ponta e por outros meios, Ana Cristina Cesar em seu Correspondência completa (1979) joga, entre outras coisas, com os vetores do biografismo/ hermetismo na invenção literária simulando, neste caso, uma carta: “Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?” (grifo meu). O termo aura, estou certo, não foi escolhido à toa pela poeta que, deste modo, dialoga criticamente com Benjamin — (…) estas considerações mereceriam uma análise mais apurada o que demandaria não apenas tempo, mas estudo.

De qualquer modo, o post-scriptum n. 2 desta “carta” de Ana C encaixa-se nas questões acima expostas, uma nova sensibilidade através do uso da máquina:

(…)

Quando reli a carta descobri alguns erros datilográficos, inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder um certo ar perfeito — repara a paginação gelomatic, agora que sou artista plástica.

(Ana Cristina Cesar. In: Correspondência completa, 1979)

Introjetar o h faltante em chorar significa sujar à caneta a perfeição plástica das letras batidas na máquina. No entanto, esta perfeição plástica gera um novo sentido: o verbo “corar”, completamente inteligível, que substitui o choro: “só posso dizer que c(h)orei um pouco de ser tudo verdade”. Como se o choro contido quisesse em primeiro momento manter-se oculto — mimetizado também pela perfeição plástica inabalável da carta datilografada.

Armando Freitas Filho, ainda, leva a imagem da máquina de escrever às alturas — sua obra reunida chama-se Máquina de escrever – poesia reunida e revista (2003). Na capa, a palavra “revista” está escrita em letra cursiva, como se o “pente fino furioso” que o poeta passa em sua obra fosse possível pelo retorno temporário ao lápis antes do “digitar sem dor, apagando/ absolutamente o erro, errar”. Mais ambivalente, a imagem da máquina de escrever também mereceria um estudo mais apurado na obra de Armando…

52

Máquina, descrever. A partir desta ordem
à mão, tento, nas suas teclas pretas
com l dedo só operante, dizer do que é feita
e do que me faz, há 40 anos: ferro, fera, fé
nas falanges que se extremam em hastes
cada qual com seu caráter, seu caractere
que imprime, vibrante, na fita entintada
as letras, o primeiro plano da palavra
que vai se lapidando na leitura até chegar
ao prisma, à refração, às vezes brusca –
alto contraste em preto e branco – outras tantas
lenta, em arco-íris, sem se ferir
mesmo martelando os tipos disparados
catando milho e algarismo, direto no miolo
do mecanismo, na entrelinha da madrugada:
Máquina d’Escrever, “Mariana”, “Manuela”
Remington, Lettera 22, Máquina Descrever.

(Armando Freitas Filho. In: Raro mar, 2006)

 

3.

(“Poema”. In: Zero à esquerda, 1981)

.

Por fim, quero comentar esse poema visual de Lenora de Barros. Nele, a montagem metalinguística parece definir uma poética. O processo de criação inicia-se no corpo, mas especificamente na língua (sem ignorar o outro sentido do termo “língua”, idioma, e a abertura que esta dupla significação permite). É a partir desta experiência que o poema é escrito (datilografado, no caso). No entanto, o terceiro quadro retoma a língua (metonímia de corpo, vida) e faz com que as teclas da máquina grafem o objeto-poema novamente na vida. Um processo de escrita que não se quer antiformal mas também não elide a experiência na forma: o poema quer voltar à vida, quer marcar-se na língua (lembro novamente o sentido de “idioma”), marcar-se na vida. Entre momentos agônicos (quadro 4) e eróticos (quadro 5) o poema vai sendo produzido. O objeto final (quadro 6) é o negativo do texto – nos tipos da máquina-de-escrever – mas o gráfico criado por este objeto (seu relevo) foi todo moldado em relação à língua (metonímia do corpo/vida e idioma). Este poema, como todos, é forma – mas não uma forma vazia. Uma forma que organiza (e se organiza através da) vida.

“O mundo é de quem faz”

Encontrei um antigo rascunho – de seis anos atrás! – na gaveta virtual (é impressionante, pois há um poema em Luto que parece um desenvolvimento consequente disso):

O risco a giz no pátio, milimetricamente medido, quadrado por quadrado por quadrado por. Todo mundo é uma ilha, é o que dizem, mas sou um istmo. Só uma mulher desempregada, cigarro borrado com batom, por insubordinação mental. Três dias antes da aprovação das novas leis trabalhistas! Expulsaram-me sem indenização, aqueles escrotos. Quer saber? Estou de saco cheio desta merda. Eu avisei, eu avisei, eu… Ora, Poderia ser casada com um velho milionário. Terrorista, eu poderia ser. No verão, gosto de abrir bastante a janela e ficar chupando manga debruçada sobre a pia da cozinha (chupo todos os fiapos e lambo o caroço liso) sonhando com o inesperado. Descontando o embaraço de morar de favor e não ter mais dinheiro, até que gozo a vida. As garotas me adoram, carrego camisinhas na bolsa e as distribuo em momentos decisivos. Risco a giz no pátio, quadrado por quadrado por. Amanhã sairá o resultado do exame. Estou esperando por esta vaga a muito tempo;(positivo) e deu.

Arnaldo Antunes (uma revisão)

(“Arnaldos”. In: Ou e, 1983)
Arnaldo Antunes foi o grande responsável por meu interesse em poesia. Na adolescência, não tive livros em casa e me divertia ouvindo a coleção de discos de MPB de meus pais. As preferências dentro daquela pequena discografia esboçaram-se pouco depois: Mais (1991) da Marisa Monte era uma delas. Lembro-me que muitas composições do disco eram dos Titãs, banda que gravou um Acústico MTV com o qual fui presenteado. Foi um de meus discos favoritos — uma vez que praticamente não os conhecia anteriormente — e abriu meu interesse para diversas bandas dos anos 1980. Em uma das faixas, “O pulso”, Branco Mello anunciava “um amigo da gente, Arnaldo Antunes”.

A voz rouca e regular catalogando nomes de doenças ecoava em minha cabeça. Suas canções gravadas pelos Titãs eram as mais incomuns que (então) eu conhecia. Um dia encontrei uma coletânea de sua carreira solo de 1993 a 1997 e, desde então, tornei-me um grande fã. E assim comecei a acompanhar sua carreira como cancionista disco após disco…

Descobri também a poesia de Arnaldo Antunes pelo livro As coisas (1992), com ilustrações de sua filha aos 3 anos de idade e poemas que se aproximam da linguagem infantil. Foi o primeiro livro de poesia que li na vida — até então meus professores do Ensino Médio mantinham a literatura como catálogo de desinteresse (o segundo livro foi Alguma poesia de Drummond, mas isso é outra história), comentando furtivamente a biografia do autor e ignorando sua obra e os desdobramentos que ela implicava.

(“Os avós”. In: As coisas, 1992)

Em uma banalidade fonética da língua — algumas palavras oxítonas terminadas em “o” quando pluralizadas sofrem um processo de abertura desta vogal que se torna “ó”, como em “ovos” — o poeta encontra um característica que, pela disposição simples, poderia ser de uma criança: o plural de “avós” coincide com a forma feminina, diferentemente do que ocorre com “netos”, “filhos” e “pais”. O que seria índice de mera curiosidade linguística ganha outra significação pelo modo exposto: desmascara o machismo (presente na língua) que, apesar de se acirrar na fase adulta (“os pais”), se redimiria(?) no fim da vida (“os avós”). O corte brusco da frase no último exemplo — “avô e avó são avós, no masculino ou no feminino?” — mantém a perplexidade no ar: afinal, embora a forma da palavra transforme-se em seu correlato feminino, o artigo ainda concorda com o masculino. Um termo garimpado pelo poeta (“os avós”) que, por sua singularidade, parece apontar para uma superação (ainda que simbólica) da misoginia.

*

O movimento que sofri em relação a poesia de Arnaldo, diferentemente do que ocorrera com sua música, não foi de contínua aceitação. A extensão do projeto verbovocovisual dos poetas concretos ganha nele outros afluentes que, por vezes, fazem-no perder a mão. Admito que, por algum tempo, desgostei completamente desta que foi a poesia que me iniciou na literatura. Agora, depois de tantos repuxos e reflexos, minha sensibilidade reencontra os bons poemas de Arnaldo Antunes: a insistência da caligrafia manual — desculpem-me a redundância — nos poemas visuais, a anseio de transformação das palavras em coisas através de outras táticas (não cotejadas pelo “plano-piloto”), a linguagem simples e despojada que de repente surpreende o leitor / espectador e mesmo o caráter didático (este oriundo dos concretos) de apresentação de uma nova sensibilidade; a poesia de Arnaldo, quando pode, encanta.

(“Asas”. In: Tudos, 1990)
O próprio significante “asas” modela as características de seu significado: a amplitude do traço parece alçar voo enquanto os dois “s” desdobrados encontram-se e simetrizam-se formando as “asas” que o escrito nomeia. O poema torna-se concreto pelo avesso: a regularidade geométrica, a fonte futura, o isomorfismo tendendo ao puro movimento estrutural cedem espaço — sem abdicar do mínimo múltiplo comum da linguagem e de seu caráter verbivocovisual — à mão livre do criador.

Também os poemas orais de Arnaldo Antunes procuram as palavras em sua materialidade. Assim, a faixa “acordo” do disco Nome (1993) coloca em tensão os signos antagônicos “concordo” e “discordo” — tensão esta presente na percussão eletrônica e no modo como o poeta canta — e, a partir desta tensão, desenterra a palavra “acordo”. O novo significante, por sua vez, desdobra-se em dois sentidos: o sujeito, perante o impasse do “discordo” e “concordo”, acabaria por “acordar” — a aparição abrupta do novo signo parece “despertar” o sujeito de um pesadelo — ignorando a tensão; ou justamente desta tensão entre os contrários surgiria um “acordo” entre as partes, uma síntese que superasse o “concordo” e o “discordo”. Enfim, o poeta experimenta diversas linguagens reafirmando sua confiança profunda nas palavras e no amplo leque de possibilidades destas — confiança profunda que eu, mesmo sendo poeta (e um poeta estritamente do verso), nem sempre consigo ter.

 

Falso Bandeira

Anteontem, fui dormir inquieto e tive um sonho curioso. Não reconheço os detalhes, mas lembro que Manuel Bandeira iria fazer uma declaração pública sobre a atual situação política do país. Os senadores todos estavam animados, esperando que o poeta atacasse veementemente o governo, e sorriam em suas cadeiras, ansiosos pela fala. Bandeira, muito velho, com a cara fechada, marcada por fundas rugas, iniciou um discurso raivoso – do qual pouco me recordo –, que tinha uma espécie de refrão com três adjetivos enumerados (algo como “quem, nesta casa, se acovarda é vil, infame e nefasto”).

O discurso, tão fora do esperado (o que se espera de um poeta?), causou um mal-estar tremendo dentro da instituição que, naquele momento, abrigava o grande artista. Com isso, a cena foi desaparecendo – primeiro o poeta, depois as cadeiras, as gravatas, os próprios senadores e, por fim, o sorriso de alguns que, mesmo contrariados com a “traição” daquela fala, mantinham-se firmes para as câmeras – e agora eu lia, com entusiasmo, que um pesquisador havia descoberto um suposto poema inédito de Bandeira[1], escrito no fim da vida (entre 1965 e 67).

Acordei com o poema na cabeça e corri para registrá-lo no papel. Nesse processo, obviamente, alguma coisa se perdeu – mas o que restou, apesar de tudo, agora existe:

ÚLTIMO ANÚNCIO

A vida, que não vivi,
apagou-me cada passo
tortuoso nas calçadas,
nas filas dos mercados,
nas pontes que não cruzei.
Sobraram leves pegadas
no carpete de meu quarto:
 
.....................................que esse produto ignaro
 ....................................seja bom, belo e barato.

Da condição dos homens,
absortos em grandes planos,
não quis as negociatas,
jantares com cavalões.
Dessa canalha retive
somente o mudo alarido
de feroz agitação:

 ....................................que esse produto inato
 ....................................seja belo, barato e bom.

Que na hora derradeira
haja ritmo, haja intento
para as últimas palavras
anunciadas aos íntimos
que ainda me restarão.
Depois, em pleno silêncio,
quedarei – só – sem anelo:

....................................que esse produto lato
...................................seja bom, barato e belo.

Dei uma olhada na Estrela da Vida Inteira e não encontrei nenhuma variação destes versos. Alguém poderia dizer que, para um bom leitor, está claro que este poema não é propriamente bandeiriano. Ora, de fato não é: “Último anúncio” é, quando muito, minha releitura sonhada de Manuel Bandeira, em face dos mais recentes acontecimentos.

[1] A referência aqui – percebi acordado – é a descoberta de Mayra de Souza Fontebasso daqueles três poemas de juventude de Carlos Drummond, publicados na revista Raça, na década de 1920.

Um minuto pro comercial

(1) quando ouvi, pela primeira vez, A Banda + Bonita da Cidade, me lembrei de uma velha canção da coca-cola

 (2) lembrando da canção, lembrei que o primeiro slogan da coca-cola em português foi criado pelo poeta Fernando Pessoa (“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”)

(3) lembrando do slogan de Fernando Pessoa, lembrei de um meu poema publicado no Almanaque Lobisomem (o que, afinal, não deixa de ser autopromoção)(4) ALMANAQUE LOBISOMEM

(5) SOL, SLOGAN

gostaria de comprar 
uma coca para 
o mundo. primeiro 
estranha-se mas é 
isso aí, uma
coca-cola como 
phármakos: uma pausa
que refresca a mera
metade de nada que 
chamamos vida.

overdose, urso polar,
santa claus, cherry 
coke. depois 
entranha-se mais e
essa é a real,
coca-cola como
phármakos: viva o que 
é bom, poeta só 
porrada, o sol doura 
sem literatura.

(6) vale dizer que o título saiu da tradução que Augusto de Campos fez de um poema de Maiakovski: “gente é pra brilhar/ que tudo mais vá pro inferno/ esse é meu slogan/ e do sol”

(7) que o poeta só porrada saiu de “O poeta nocaute” de Murilo Mendes

(8) que todo resto saiu da coca-cola e/ou do Fernando Pessoa, ponto